Cartas para ultramares, uma instalação áudio-fotográfica: O desconforto na paisagem segundo o som e a imagem

Letters to ultramarine, an audio-photographic installation: Discomforts in the landscape according to sound and image

Gustavo José Balbela de Azambuja
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Isadora Nocchi Martins
Investigadora independiente, Brasil

Cartas para ultramares, uma instalação áudio-fotográfica: O desconforto na paisagem segundo o som e a imagem

AusArt, vol. 9, núm. 1, pp. 87-102, 2021

Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea

Recepción: 17 Marzo 2021

Aprobación: 07 Junio 2021

Resumo: De que maneira uma instalação áudio-fotográfica pode colaborar com o entendimento de tensões e desconfortos que emanam de uma paisagem urbana e latinoamericana tomando como objeto um bairro de classe média em Porto Alegre? É a esta discussão que se propõe este artigo, a partir da análise do processo de criação da instalação Cartas para ultramares. Os reflexos de interferências culturais estrangeiras, da globalização neoliberal e mesmo do colonialismo nessa paisagem são constantes, e estão tão profundamente inseridos no tecido urbano do Sul Global que, por vezes, parecem desaparecer aos olhos de seus habitantes. Diante deste contexto, a instalação aqui analisada busca propor caminhos para problematizar essas questões como uma forma de estabelecer uma interface crítica com o público diante da paisagem. Observamos que o formato áudio-fotográfico potencializa a observação destes desconfortos a partir de diferentes camadas, ao mesmo tempo que possibilita ao espectador uma experiência de transposição do contexto específico retratado pela obra para seus próprios contextos da vida.

Palavras-chave: ÁUDIO-FOTOGRÁFICA, PAISAGEM URBANA, DESCONFORTOS, PORTO ALEGRE (BRASIL), INSTALAÇÃO.

Abstract: How can an audio-photographic installation contribute to the understanding of tensions and discomforts that emanate from an urban and Latin American landscape, taking as its object an upper middle-class neighborhood in Porto Alegre? This is the discussion that this article proposes, based on the analysis of the creation process behind the installation Letters to ultramarine. The consequences of foreign cultural interference, neoliberal globalization and even colonialism in this landscape are constant, but they are so deeply embedded in the Global South's urban tissue that they sometimes seem to disappear in the eyes of its inhabitants. In this context, the installation seeks to negotiate these tensions as a way to establish a critical position in regards to the landscape. We observed that the audio-photographic format enhances the observation of different layers of these discomforts, while allowing the viewer to transpose the specific context explored by the work into their own contexts.

Keywords: INSTALLATION, AUDIO-PHOTOGRAPHIC, URBAN LANDSCAPE, DISCOMFORTS, PORTO ALEGRE (BRASIL).

Eu já vinha pensando sobre bananeiras há algum tempo antes daquela manhã de sábado quando elas entraram definitivamente no trabalho. Naquele dia, eu havia saído de carro para fotografar alguns pontos da cidade que mapeara anteriormente, mas dirigia atento a novos temas em potencial. Quando passei pelo estacionamento vazio de um grande estádio de futebol em Porto Alegre, a bananeira solitária me chamou a atenção e me vi obrigado a parar o carro.

Desci. Montei o tripé, ajustei a composição e a exposição à minha preferência e cliquei. Ao conferir a imagem que segundos depois se formava no visor de LCD da câmera levemente ofuscado pelo sol forte, um pequeno borrão preto, quase imperceptível, me causou incômodo. Estaria a lente suja? Ou pior, estaria o sensor danificado? Não. Um bem-te-ví cruzara o quadro no momento exato do disparo.

Gustavo Balbela, Novembro de 2019

Introdução

A narrativa acima trazida narra a gênese de imagens que viriam a compor a instalação áudio-fotográfica Cartas para ultramares, cujo processo de desenvolvimento será o foco de análise deste artigo. A instalação, desenvolvida como desdobramento de projeto homônimo, é um trabalho realizado em colaboração, composto por 6 fotografias e 6 poemas (produzidos por Gustavo Balbela ) e uma peça sonora (composta por Isadora Martins)1. Para desenvolver a instalação, transitamos por nossa cidade natal, Porto Alegre 2, buscando observar fontes de nossos desconfortos no espaço em que habitamos: uma paisagem latinoamericana e urbana, em um bairro de classe média alta.

Esta paisagem, segundo percebemos, parece ter seus elementos moldados por interferências culturais estrangeiras, produzindo um tipo de arquitetura que faz eco ao colonialismo e ao aspecto homogêneo e hegemônico que caracteriza o urbanismo no capitalismo global. Tais circunstâncias produzem, em conjunto, um espaço aparentemente vazio de significados próprios e que frequentemente nega sua própria espacialidade e suas características climáticas e ambientais, se limitando a imitar estruturas distantes e importadas do Norte Global 3. Cartas para ultramares se dedica a exploração desta paisagem incômoda buscando propor sua observação através de obras que sejam pontos de partida para uma percepção mais atenta da complexidade do espaço urbano contemporâneo.

Diante deste contexto, a instalação aqui analisada busca coletar e apresentar fragmentos de nossa vivência da cidade. Ao trabalhar elementos aparentemente banais, a obra propõe uma observação atenta do cotidiano, ao mesmo tempo que convida à reflexão sobre as manifestações de fenômenos como a globalização e o colonialismo através de imagens e sons recontextualizados e, por vezes, modificados, por meio dos quais buscamos externar desconfortos que nos afetam.

Ao longo deste artigo, pretendemos refletir brevemente sobre origens possíveis desses desconfortos a partir de aproximações entre nossa experiência pessoal e subjetiva da cidade e conceitos como o de hiperobjetos, segundo o filósofo Timothy Morton (2013), e o de espaço, segundo a geógrafa Doreen Massey (2005). Descreveremos também o processo através do qual a obra, inicialmente fotográfica, se desdobrou em uma instalação áudio-fotográfica, e apontaremos de que formas observamos o aspecto sonoro como uma camada particularmente potente para, em diálogo com a fotografia, mapear a paisagem urbana. Acreditamos, como reflete o artista áudio-fotografico Hali Santamas (2017), que a combinação de som e imagem pode produzir um meio particularmente potente para transmitir sentidos implícitos e, em nossa instalação, buscamos nos valer dessa potência para construir uma obra a partir de elementos de nosso cotidiano, do espaço que chamamos de casa e de sua história.

O desconforto segundo a paisagem

O projeto Cartas para ultramares nasce de uma percepção de que nossa experiência cotidiana do espaço urbano era responsável pela emergência de inquietudes e desconfortos de natureza até então incerta. Balbela começa então a praticar a fotografia como um meio para melhor compreender tais desconfortos, e logo passa a localizar suas fontes em elementos específicos desta paisagem, que refletem (direta ou indiretamente) um contexto marcado por processos como a globalização neoliberal e mesmo pelos rastros do colonialismo.

Entendemos a globalização neoliberal, conforme delineia Mogobe Ramose, como um um processo (e não um fato consumado) que se caracteriza por ser uma das formas possíveis de globalização: uma manifestação específica de globalização econômica (2014, 161). Segundo explica o autor, o impulso para expansão de um determinado sistema constitui o fundamento da globalização (em um sentido geral), que poderia se desdobrar de diferentes maneiras: "a globalização pode ser cultural, religiosa, política e económica" (Ramose 2014, 149–50). A globalização neoliberal seria, portanto, uma de muitas globalizações possíveis, caracterizada pela expansão de um sistema econômico que tem o acúmulo de capital como um fim em si mesmo.

Um elemento que entendemos como central nesse contexto é explorado por Ramose (2014, 146) segundo a nomenclatura de fundamentalismo econômico. O autor se refere a esta condição, marcante na atualidade, em que o dinheiro passa a ser um fim em si mesmo, e seu acúmulo se estabelece como elemento que estrutura e organiza o pensamento de forma absoluta e dogmática no contexto da globalização neo-liberal:

A lucratividade, ou a compulsão insaciável de acumular mais e mais dinheiro a qualquer custo, é a apoteose do dinheiro como um fim em si mesmo. O dinheiro tornou-se o ‘deus’ ao redor do qual tudo deve gravitar e perante o qual todos se devem submeter (Ramose 2014, 146).

Cabe destacar que, mesmo por sua condição estrutural, tal condição, segundo entende o autor, estaria profundamente relacionada a diversos aspectos de nossa constituição social. No presente artigo, entretanto, assim como na obra sobre a qual refletimos, atentamos aos desdobramentos desta condição a partir de uma perspectiva estritamente pessoal, e observando seus efeitos especificamente na paisagem em que habitamos. Nesta paisagem, segundo percebemos, são poucos os elementos que não refletem a hegemonia deste fundamentalismo econômico, seja por constituírem meios através dos quais um determinado agente busca acumular dinheiro, seja por constituírem uma consequência não-intencional de algum processo semelhante. Assim, cada elemento da paisagem, das árvores às construções, órbita e se submete ao totalitarismo do capital.

Diante deste contexto, a obra de Luigi Ghirri (1942-1992), artista e pensador italiano, foi uma referência importante neste processo de reflexão através da paisagem. Como outros fotógrafos que atuaram naquele mesmo período – como os da escola de Dusseldorf e aqueles associados à New Topographics – Ghirri "participa ativamente de uma fase de indagação sobre a identidade verdadeira da paisagem, da paisagem pós-industrial, de um território sujeito a um acelerado processo de modificação" (Fabiani, Gasparini & Sérgio 2013, 19).

Apesar da significativa distância tanto geográfica como histórica que nos separa de Ghirri, reconhecemos esta aproximação no que diz respeito à indagação sobre a identidade de uma paisagem que, apesar da familiaridade, temos dificuldade de reconhecer. Neste sentido, tanto a obra poética como as reflexões teóricas de Ghirri indicam a paisagem cotidiana como um campo fértil para elaborar tais indagações:

[Ghirri] parece indicar que o espaço às margens, banal, sem qualidades nem particularidades – que, redesenhado pela globalização e pela padronização visual parece ter perdido a identidade –, é a verdadeira paisagem a ser analisada em busca de uma visão mais autêntica que supre o estereótipo e o lugar-comum. Então a tarefa do fotógrafo passa a ser a busca pela identidade residual e persistente dos lugares a serem conhecidos e reconhecidos por meio do dispositivo fotográfico, graças também a aquele "reagente afetivo" que parece ser o único modo de encontrar uma sintonia com o objetivo de compreendê-los (Fabiani, Gasparini & Sérgio 2013, 16).

É justamente a partir dessa operação do dispositivo fotográfico com vistas a um reagente afetivo que buscamos compreender melhor a paisagem que habitamos, bem como nela localizar manifestações deste contexto marcado por processos como a globalização neoliberal. Nem sempre explícitos, mas frequentemente presentes, os reflexos destes processos de degradação ambiental atuam sobre a experiência da paisagem urbana, causando desconforto e catalisando a produção da obra. Propomos, portanto, estabelecer um diálogo com dois conceitos que podem ajudar a elucidar de que formas esses fenômenos ocorrem.

O primeiro é o de hiperobjeto, definido por Timothy Morton (2013) como fenômenos "largamente distribuídos no tempo e no espaço"4. São objetos (aqui em um sentido amplo) que tanto excedem a escala humana, que sequer conseguimos imaginá-los adequadamente. Entre outras características que Morton observa como comuns à todos os hiperobjetos (são viscosos, fundidos, não-locais, em fase e interobjetivos) 5, destacamos aqui a não-localidade: os hiperobjetos desafiam "a espacialidade e a temporalidade, eles se dividem em inúmeros fragmentos sem nunca perder a coerência" (ibíd.) 6. Assim, a experiência humana de hiperobjetos pode parecer fragmentada e esporádica, mas essa intermitência não indica que o fenômeno não esteja mais atuando. Por terem características hiperdimensionais, não basta estar próximo de hiperobjetos para vê-los: vivemos mergulhados neles, mas apesar de suas enormes escalas espaciais e temporais, na maior parte do tempo não os percebemos.

A forma como nos relacionamos com os desconfortos que são tema da obra se aproxima dessa característica, fazendo deste um conceito potente para refletir sobre suas causas, apesar de reconhecermos tais causas não constituem hiperobjetos no sentido estrito 7. Em nossa experiência, ainda que saibamos se tratarem de fenômenos históricos, que atuam constantemente no plano de fundo, nossa interação com eles se dá de forma intermitente através da paisagem, característica que será posteriormente observada também na composição formal da própria peça sonora.

Outro conceito que consideramos potente para a análise da obra é o de espaço conforme proposto por Doreen Massey, e, especificamente, as suas consequências quando aplicado à análise da globalização. A obra da autora tem como paradigma uma crítica à noção atualmente hegemônica do espaço e à naturalização da globalização, comumente vista como como um processo inevitável.

[Governos como os do Reino Unido e dos Estados Unidos da América] nos contam a história da inevitabilidade da forma particular de globalização capitalista neoliberal que vivemos no momento – a dúbia combinação da glorificação da livre (mas desigual) circulação de capitais por um lado, com o firme controle sobre o movimento de trabalho do outro. De qualquer forma, eles nos dizem que é inevitável (Massey 2005, 4)8.

Para a autora, o entendimento atualmente hegemônico do espaço nega, à espacialidade, sua característica mais própria: a possibilidade de constituir a esfera na qual diferentes trajetórias podem coexistir. A globalização nega, a diferentes regiões, a possibilidade de desenvolver suas "próprias trajetórias, suas histórias particulares, e o potencial para construir seus próprios, e talvez distintos, futuros", reduzindo qualquer diferença à condição de progresso ou atraso (Massey 2005, 182).

Parece-nos que uma perspectiva que observa quaisquer diferenças espaciais em termos de progresso e atraso, e que portanto negligencia as características específicas de cada espaço, como a criticada pela autora, é determinante na constituição da paisagem que observamos. Em nossas cidades podemos encontrar produtos materiais da busca por alcançar certos modelos do ‘progresso’, assim como elementos ignorados por denunciarem um suposto ‘atraso’, em um processo que acreditamos estar intimamente relacionado com aquela sensação inicial de desconforto e desorientação. Assim, pretendemos que a atenção às características visuais e sonoras do espaço que habitamos seja um meio potente para ativar a reflexão crítica sobre os elementos que o constituem para além da simples comparação de diferentes espaços em termos de maior ou menor ‘desenvolvimento’.

José Gil (2018, 21–2) observa, na condição de um filho de colono em Moçambique, uma múltipla cisão "entre o mundo material e elementar de África [...] e o mundo cultural de Portugal [...] aparentemente transparente, mas sempre inconscientemente residual, artificial". Embora nossas experiências tenham inúmeras diferenças marcantes, essa cisão se aproxima da que observamos em nosso cotidiano. Uma ruptura que – como um hiperobjeto – pode não estar sempre acessível, mas está sempre presente. Se a cisão de que fala Gil se estabelece entre a África e Portugal, a nossa se estabelece entre a América que nos cerca e uma outra América: geograficamente e socialmente distante, mas que sempre orbita o imaginário.

Sequência Bem-te-vi e Bananeira (2019), projetada loop na instalação Cartas para ultramares (2020)
Figura 1
Sequência Bem-te-vi e Bananeira (2019), projetada loop na instalação Cartas para ultramares (2020)
Acervo dos autores

É deste contexto – e do interesse em negociar relações entre a paisagem urbana, o legado do colonialismo e a ação humana (material e simbólica) sobre os ecossistemas – que surge a série de imagens que dá origem à instalação analisada. A bananeira – frequentemente associada à fragilidade das democracias no continente 9 – foi introduzida na América Latina visando a produção de frutos para a exportação, porém se tornou tão presente na paisagem que muitas vezes é tida como uma espécie nativa. A imagem fotográfica captada ganha uma nova camada quando um bem-te-vi – ave 10 nativa da região – cruza o frame no momento exato do disparo. A fotografia original é então posteriormente manipulada de forma a produzir um políptico composto de quatro imagens (Figura 1), cujo conjunto busca amplificar e explicitar a agência da ave ao se colocar no quadro. A imagem é ampliada, distorcida e multiplicada buscando produzir estranhamentos a partir da presença do pássaro de forma a tensionar relações entre nativo e exótico, local e global, importado e imposto.

Memória em sons e imagens

Meses depois de haver produzido estas imagens, iniciava-se a preparação da exposição coletiva Under (De)construction (realizada em setembro de 2020 na cidade de Landskrona, na Suécia)11, onde Gustavo Balbela apresentaria o projeto Cartas para ultramares. A série Bem-te-vi e Bananeira foi então levantada como elemento potencialmente central a ser exposto, mas a sequência de 4 imagens sozinhas não ativava tantas camadas do trabalho quanto Balbela gostaria. A natureza coletiva da exposição na qual o trabalho se inseriu e a consequente restrição quanto à área a ser ocupada por cada artista impedia que composições com mais imagens fossem apresentadas. Além disso, a obra seria exposta em um contexto estrangeiro, onde os significados associados à ave e à árvore não seriam de conhecimento comum à boa parte dos espectadores-ouvintes.

Isso contribuiu para que Balbela considerasse outras estratégias capazes de, sem comprometer a visualidade das fotografias, trazer para a instalação elementos que remetessem mais fortemente aos desconfortos que são tema de sua pesquisa. Àquela altura, inicia-se um processo de colaboração, uma vez que Gustavo Balbela e Isadora Martins já haviam discutido sobre a possibilidade de desenvolverem uma instalação áudio-fotográfica, dentro do projeto Cartas para ultramares. Diante da oportunidade oferecida por essa exposição, os autores retomaram as conversas sobre a colaboração e definiram conceitos gerais que orientariam a composição da peça (como a busca por produzir sensações de estranhamento e intermitência, assim como o interesse em trabalhar com sons que remetem tanto ao universo político como às aves da fauna local) que, pouco a pouco, num processo experimental e dialógico, começava a tomar forma.

O formato áudio-fotográfico foi considerado potente pois, além de combinar as áreas de maior familiaridade dos dois artistas, abria caminhos para a criação de instalações imersivas e afetivas que articulassem a temporalidade dos materiais que a constituem às memórias e histórias do público participante. O som com suas associações memoriais afeta a percepção das imagens com seu constante movimento no tempo, enquanto as imagens com suas associações memoriais alteram a percepção do som reinventando sentidos da série de fotos anteriormente produzida (Santamas 2017) 12. Além disso, a apresentação de uma instalação áudio-fotográfica possibilitaria que os poemas de Gustavo Balbela (Quadro 1) fossem incluídos compondo com as imagens e o som, oferecendo ao público novas chaves de acesso para a obra.

Quadro 1: 3 dos poemas que integram a peça sonora

Quadro 1
3 dos poemas que integram a peça sonora
3 dos poemas que integram a peça sonora
Acervo dos autores

Iniciado o processo de composição da peça sonora, levantamos a intenção de que os elementos pictóricos e sonoros da instalação apresentassem um caráter de complementaridade conceitual e que mantivessem uma coesão estética. Assim, a combinação som/imagem permitiria adicionar profundidade à obra através de camadas que supririam as limitações do suporte fotográfico. Além disso, buscamos que as imagens e a música estabelecessem diálogos um com o outro e, para tanto, alguns princípios e procedimentos coincidem nos dois elementos da instalação, como a manipulação digital e a distorção de elementos. Foi definido que os poemas deveriam estar presentes e audíveis na composição, enfatizando um tom melancólico, estabelecendo um diálogo com o espectador-ouvinte. Ao seu redor, transmitiria-se uma atmosfera sônica ansiogênica e aparentemente intermitente, como se entrasse e saísse do ambiente, mas sempre presente.

Uma representação mais descritiva da cidade, presente nas imagens do projeto como um todo, foi considerada redundante para trabalho do som, e a opção de utilizar gravações de campo foi descartada já no início do processo criativo. Por outro lado, os autores consideraram que o elemento da ave poderia ser enfatizado sonoramente de maneira que aludisse ao fato de que seu canto é cotidianamente escutado ao fundo e ignorado em grandes cidades, assim uma ligação complementar com a série de 4 fotos. Na instalação os cantos do bem-te-vi e do sabiá (outra espécie nativa da região) podem ser ouvidos em diversos momentos da composição ora reproduzidos tal qual o original (e.g. 2min 08s) ora altamente distorcidos e texturizados (e.g. 4min46s), fazendo referência às alterações de tamanho realizadas nas imagens, onde o elemento visual do pássaro é ampliado e repetido. Assim, associa-se imagem à sonoridade, ambas distorcidas e ressignificadas (Figura 2).

Imagem da sequência Bem-te-vi e Bananeira (2019)
Figura 2:
Imagem da sequência Bem-te-vi e Bananeira (2019)
Acervo dos autores

Fragmentos de documentos sonoros extraídos da recente história política brasileira também foram incluídos na peça sonora e podem ser ouvidos ao longo dela. Foram utilizadas frases significativas do discurso de Dilma Rousseff (2016) logo após ter sido condenada em um processo de impeachment, e do discurso de Ernesto Araújo (2019) ao assumir o Ministério das Relações Exteriores. Os áudios dos discursos foram processados de maneiras diversas para que ficassem apenas parcialmente reconhecíveis. Por vezes, eles podem ser ouvidos alternadamente entre o lado esquerdo e o direito do panorama sonoro (eg. 1'52'' e 2'44''). Em outros momentos, eles foram invertidos ou altamente distorcidos para funcionarem como uma textura, um ruído, em oposição ao texto falado (e.g. 3'43'' e 6', respectivamente).

A busca por produzir no espectador a sensação de intermitência constitui nossa principal estratégia para operacionalizar o conceito de hiperobjeto, e se fez presente na peça sonora de duas formas principais: o aumento e a diminuição da densidade e a presença constante de uma onda sonora ao fundo da composição, que altera sua frequência e seu volume lentamente ao longo do tempo. Essa frequência inicia e encerra exatamente na mesma altura, possibilitando que, no contexto da instalação, a peça seja executada em loop. A duração da peça sonora foi definida levando em consideração os conceitos de sequência e repetição, que são importantes também no aspecto visual do projeto. Assim, a composição é longa o suficiente para que nem todo espectador-ouvinte escute-a por toda sua duração, mas curta o suficiente para que isso seja uma possibilidade plausível e até bem-vinda.

Paralelamente ao desenvolvimento da peça sonora, outros elementos da instalação iam tomando forma. Em colaboração com Jenny Lindhe, curadora da exposição, as 4 imagens da série Bem-te-vi e Bananeira (2019) foram combinadas com duas imagens da série Estátua da Liberdade (2019), também produzidas como parte do projeto Cartas para ultramares (Figura 3). Foi definido que as 4 imagens de Bem-te-vi seriam projetadas sequencialmente sobre as duas imagens de Estátua (impressas em jato de tinta sobre papel medindo 150x100cm). Acima das imagens, se via um par de fones de ouvido com os quais os espectadores podiam ouvir a peça composta por Isadora Martins, em uma versão na qual os poemas são recitados em inglês.

Apesar de sua presença na instalação aqui analisada, entendemos que uma reflexão mais profunda sobre as imagens da série Estátua não cabe no escopo deste artigo. Cabe destacar, no entanto, que a estátua fotografada se trata de uma de muitas réplicas da estátua da liberdade nos estacionamentos das unidades de uma cadeia de lojas de departamento do Sul do Brasil. O proprietário da cadeia de lojas, notório por escândalos de sonegação de impostos (Batista 2020) e acusado de coagir seus empregados na eleição presidencial de 2018 (Corrêa 2018), afirma se orgulhar tanto de sua defesa da liberdade quanto do fato de que as fachadas de suas lojas imitam a fachada da sede da Casa Branca, sede do poder executivo federal estadunidense.

Instalação Cartas para ultramares, na exposição Under (De)construction. Duas imagens impressas em jato de tinta sobre papel (150x100cm), sequência de imagens projetada digitalmente sobre uma das impressões e peça sonora (7min e 18s) reproduzida em loop.
Figura 3:
Instalação Cartas para ultramares, na exposição Under (De)construction. Duas imagens impressas em jato de tinta sobre papel (150x100cm), sequência de imagens projetada digitalmente sobre uma das impressões e peça sonora (7min e 18s) reproduzida em loop.
Landskrona Photo/Acervo dos autores

Em seu conjunto, a instalação constitui uma singularidade onde convivem elementos de grande peso simbólico: a estátua, a bananeira, e o bem-te-vi. Combinados à atmosfera ansiogênica e algo incômoda proporcionada pela peça sonora e aos versos que compõem os poemas, pensamos ter atingido um equilíbrio potente entre o comum e o incômodo, bem como entre o oferecimento de chaves de leitura para a obra sem descrever diretamente os elementos que a compõem.

Considerações finais

Quando modelos de progresso estrangeiros moldam o ambiente urbano de maneira violenta, mas silenciosa, ficamos sem pontos de referência, sem um chão sólido em que possamos pisar. De construções a árvores, nada parece conectado com o entorno e a paisagem de um local parece tornar-se um mero resíduo de uma cultura cujo principal objetivo é o consumo, mas que só produz o vazio. Torna-se cada vez mais difícil transitar em um espaço, ao mesmo tempo, hipercodificado e vazio de sentidos próprios, uma vez que o fundamentalismo econômico orienta de forma totalitária a sua constituição. As consequências destes fenômenos de descaracterização e de naturalização estão tão profundamente inseridas no tecido urbano do Sul Global que, por vezes, desaparecem aos olhos de seus habitantes, assim como a origem exótica da bananeira.

Quais os sentidos e as origens dos objetos que nos cercam? Porque eles nos parecem naturais quando suas origens podem ser tão distantes? De que formas essas imagens e suas presenças moldam nos modelam, assim como as plantas como a bananeira que passam a coexistir em nossos contextos? Estas foram algumas das questões que orbitaram ao longo de nosso processo de colaboração, e que acreditamos, são propostas pela obra em grande medida graças à combinação som/imagem/texto, proporcionada pela justaposição das fotografias e poemas de Gustavo Balbela e da peça sonora de Isadora Martins. A colonização da fauna, da flora, do discurso político, e do imaginário se materializam em uma instalação, produzindo a experiência de um ambiente vazio e sintético que a obra ajuda a melhor observar.

Se nossos desconfortos têm origem em fenômenos de caráter hiperobjético, extraímos deste conceito o procedimento central que a obra busca colocar em prática, isto é, a construção de uma situação na qual o acesso a compreensão empática do de um fenômeno de caráter hiperdimensional seja facilitada. Buscamos capturar algumas das posições de nosso cotidiano a partir das quais estes fenômenos, tão espalhados pelo espaço e pelo tempo, sejam perceptíveis pelo agenciamento expositivo, tendo a expectativa de abrir uma espécie de portal através do qual estes espectros possam ser observados. Assim, tendo a espacialidade como um dos pontos de partida de nossa prática, buscamos propor, ainda que em pequena escala, uma oposição à naturalização da tendência de supressão da especificidade no contexto da globalização, referida por Massey.

Mais do que isso, acreditamos que a obra é capaz de transcender os desconfortos específicos de nossa paisagem. Esperamos que os procedimentos que propomos ao público – como a análise atenta do ambiente cotidiano – possam ser transpostos para outros contextos. Assim, convidamos os espectadores-ouvintes a estabelecerem, a partir dessa proposição, caminhos para a negociação de tensões eventualmente produzidas por suas próprias paisagens e memórias pessoais, permitindo uma posição mais crítica diante delas.

Observamos que o componente sonoro da instalação assume uma posição crucial nessa direção, não somente ao construir novas camadas de representação dos desconfortos que percebemos em nossa paisagem, mas também ao oferecer ao público novos caminhos para acessar a obra. Neste sentido, os poemas talvez sejam o exemplo mais explícito, mas acreditamos que o cantar dos pássaros e os discursos políticos também atuem neste dessa forma. Ainda que se encontrem distorcidos até o limite da cognoscibilidade, juntos eles ajudam a compor o elemento atmosférico do desconforto a partir do cotidiano, assim como a colocar em tensão as relações entre local e exótico, natural e sintético.

Através da justaposição de paisagens urbanas e da peça sonora, buscamos criar uma atmosfera onde imagens comuns e do cotidiano se tornam fontes de desconforto e estranhamento. Acreditamos que o formato áudio-fotográfico se mostrou extremamente potente para criação dessa atmosfera pois apresenta ao espectador detalhes sonoros e visuais, que dificilmente são percebidos conscientemente ao mesmo tempo ou por um período estendido de tempo (Adkins & Santamas 2014). Além disso, este formato instalativo amplifica a expressão das sutilezas e significados que envolvem Cartas para Ultramares. Assim, a instalação convida o espectador a contemplar o cotidiano e a procurar nele por fragmentos do capitalismo e da globalização, evocando suas próprias memórias pessoais por meio de uma posição elaborada pela perspectiva dos autores.

Referências bibliográficas

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Notas

[2] Cidade de aproximadamente 1 milhão e meio de habitantes, capital do estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil.
[3] Ao nos referirmos ao Norte Global e ao Sul Global, cabe ressaltar, invocamos uma classificação que ganha popularidade no final da Guerra Fria, quando o termo Terceiro Mundo pareceu cair em desgraça. Apesar da mudança não significar uma renúncia ao ‘Terceiro Mundo’, ela sinaliza um ajuste no posicionamento ideológico e político para refletir as novas formas de contendas em torno dos legados do colonialismo. As regiões chamadas de Sul Global, apesar de sua vasta diversidade, têm em comum o fato de terem passado por "diferentes formas de controle colonial e transformações econômicas" e mesmo no período pós-colonial "devem enfrentar disfunções internas e dissidências, algumas das quais podem ter raízes em tradições pré-coloniais de cultura, política e economia" (Grovogu 2011, 176).
[4] “massively distributed in time and space” (tradução dos autores).
[5] No original em inglês: Viscous, Molten, Nonlocal, Phased e Interobjective. [6]exhibiting nonlocal effects that defied location and temporality, cuttable into many parts without losing coherence” (tradução dos autores).
[6] “exhibiting nonlocal effects that defied location and temporality, cuttable into many parts without losing coherence” (tradução dos autores).
[7] Acreditamos que a principal característica que nos impede de caracterizar fenômenos como o colonialismo e a globalização como hiperobjetos sejam as suas escalas temporais. Ainda que estes sejam processos históricos que atuem por centenas de anos, eles ainda estão aquém dos exemplos oferecidos por Morton, como o aquecimento global, o lixo radioativo ou o plástico nos oceanos, cuja existência se estenderá mesmo além da extinção da espécie humana.
[8] “tell us a story of the inevitability of that particular form of neoliberal capitalist globalisation which we are experiencing at the moment – that duplicitous combination of the glorification of the (unequally) free movement of capital on the one hand with the firm control over the movement of labour on the other” (tradução dos autores).
[9] Wikipedia, s.v. “República das bananas”, https://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_das_bananas. A leitura do verbete para República das bananas na Wikipedia nos pareceu um exemplo notável, por constituir tanto uma descrição do significado original do termo, quanto uma possível leitura do atual cenário político brasileiro: "República das bananas é um termo pejorativo para um país, normalmente latino-americano, politicamente instável, submisso a um país rico e frequentemente com um governante corrompido e opressor, revolucionário ou não, ou por uma junta militar. Sua economia é, em grande parte, dependente da exportação de monoculturas, tais como bananas, café ou laranjas, ou até mesmo a extração de minerais. Normalmente, tem classes sociais estratificadas, incluindo uma grande e empobrecida classe trabalhadora e uma plutocracia que compreende as elites de negócios, política e militares".
[10] De nome científico Pitangus sulphuratus.
[11] Exposição que integrou o programa do Landskrona Foto Festival em 2020, curada por Jenny Lindhe, e organizada pela plataforma Parallel, no contexto da qual a obra Cartas para ultramares foi desenvolvida.
[12] "the temporalities of the materials come together with the memories and histories of the participant, affecting the way in which it is perceived. The movement of the sound and the memorial associations it may come with which affect the perception of the photographic images, constantly reframing them. In the same way, the repetition of the image and the memorial associations that come with it anchor the perception of sound against an assemblage of captured pieces of the past" (tradução dos autores).
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