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Ativismo de Vítimas do Incêndio na Boate Kiss: evento traumático, causa pública e conflitos morais
Victims’ activism from the Kiss nightclub fire: traumatic event, public cause and moral conflicts
Papeles del CEIC. International Journal on Collective Identity Research, núm. 1, pp. 1-30, 2017
Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea

Artículos de investigación. Monográficos


Recepção: 15 Agosto 2016

Aprovação: 15 Fevereiro 2017

DOI: https://doi.org/10.1387/pceic.16911

Resumo: O artigo aborda o ativismo de familiares de vítimas do incêndio da boate Kiss, ocorrido em 2013, em Santa Maria, no interior do sul do Brasil, na qual morreram 242 pessoas. Com várias incursões em campo, estive acompanhando o movimento Santa Maria do Luto à Luta durante três anos, nos atos realizados nesta cidade. Como recorte abordo a relação deste movimento de vítimas com o Estado através das políticas públicas de saúde e o conflito desenvolvido entre o movimento e uma instituição estatal fiscalizadora dos direitos difusos e individuais, o Ministério Público, em sua esfera local. A escolha deste conflito não é ocasional, ele revela que a relação com o descaso e omissão do Estado também potencializa a percepção do evento como traumático por aqueles que foram atingidos. Desse modo, dialogo com diversos estudos antropológicos que tematizam a relação entre movimentos de vítimas e o Estado para explicitar essa relação entre sofrimento, descaso estatal e construção de uma causa. Inserida nesse contexto de conflito com instituições públicas, a fuga da imagem da “loucura” a qual os familiares defendem estar sendo atribuída a eles nos remete a outras formas de busca por legitimação do discurso da vítima que no contexto local tomam formas particulares. Problematizo discussões mais amplas acerca da figura da vítima no espaço público e da linguagem do sofrimento como modo de se posicionar politicamente. A relação com o Estado também sinaliza a produção de subjetividades através das quais o evento é interpretado.

Palavras-chave: Trauma, Ativismo, Vítima, Causa.

Abstract: This article addresses the activism of victims’ relatives of the Kiss nightclub fire that took place in Santa Maria, in south Brazil, in 2013 causing 242 deaths. I have been accompanying for the past three years the actions carried out by the Santa Maria do Luto à Luta movement. I focus here on the relationship between this movement and the government, analyzing the public health policies and the conflict emerged since the incident between the movement and the Ministério Público, a government institution which is responsible for watching over diffuse and individual rights in its own local sphere. What this conflict points out is the fact that the State’s omission enhances the perception of the event as traumatic by those who have been affected by it. My research converses with several other anthropological works that also focus, in some way or another, on the relationship between victims’ movements and the State in order to emphasize the connection between suffering, the State’s neglect and the construction of a cause. In my own work, I take notice of some forms of legitimation of the victim’s discourse, created by family members as they fight the derrogatory claims of “madness” thrust upon them. Finally, I take a look on the broader debates about the victim’s place in public space and the language of suffering as a way of positioning oneself politically. The relationship with the State also offers some insights regarding the production of the subjectivities of those involved with the Kiss event; it is through this production, precisely, that the event will be interpreted. Paula Arosi, A. (2017). Ativismo de Vítimas do Incêndio na Boate Kiss: evento traumático, causa pública e conflitos morais. Papeles del CEIC. International Journal on Collective Identity Research, vol. 2017/1, papel 168, CEIC (Centro de Estudios sobre la Identidad Colectiva), UPV/EHU Press, http://dx.doi.org/10.1387/pceic.16911 Recibido: 8/2016; Aceptado: 2/2017 Introdução1

Keywords: Trauma, Activism, Victim, Cause.

Introdução1

Nossa vida teve uma mudança brusca (…) então quê que aconteceu? Eu que antes quando vinha caminhando e via alguém com uma máquina, uma câmera, um microfone se eu pudesse dobrar na primeira esquina ou atravessar a rua eu fazia (...), faltava coragem de ir. Em relação ao que aconteceu com a tragédia, a coragem que nós tivemos de sair, de gritar (…). Uma coragem a mais que a gente conseguiu a partir dali de enfrentar o microfone para que quanto mais longe chegassem as notícias e os reais motivos (…). Para nós era muito importante que o povo ficasse sabendo o que realmente aconteceu. (Henrique2, 30/08/2014).

Em 27 de janeiro de 2013 um incêndio atingiu uma casa noturna da cidade de Santa Maria, no interior do sul do Brasil. A banda que tocava naquela noite usou fogos de artifícios para sua apresentação. Na madrugada do domingo, dia 27, o fogo iniciou e se alastrou rapidamente pela espuma de isolamento acústico que era altamente inflamável. Mais tarde peritos viriam a determinar que as vítimas tinham sido expostas à liberação de uma substância tóxica conhecida como cianeto. Não havia saída de emergência na boate e a única saída era entrecortada por barras de ferro que regulavam o fluxo de entrada na casa noturna, limitando assim a saída da boate. Alguns jovens voltaram a entrar na boate para socorrer entes queridos aumentando assim sua exposição ao cianeto, alguns acabaram morrendo no local do incêndio, por não portar o material de proteção necessário para essa exposição.

A operação de resgate conjugou uma série de instituições estatais e da sociedade civil, assim como muitos voluntários. As demonstrações de solidariedade eram evidentes. Muitos psicólogos responderam a uma chamada na televisão para que voluntários da área se deslocassem ao local.

O total de vítimas foi contabilizado pelo número de pessoas mortas no dia e as demais que morreram no hospital, totalizando 242 vítimas fatais. Assim consolidando certa matemática dos fatos na qual só contam como vítimas fatais as que morreram, de certa forma, aos olhos do Estado. O número de sobreviventes é incerto, estima-se 683. Após o incêndio foram formados a Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), o Movimento Santa Maria do Luto à Luta (SMLL) e a ONG Para Sempre Cinderelas. Mais tarde foram formados o movimento Mães de Janeiro e a ONG Ah!Muleke.

Para o argumento deste artigo vou privilegiar um enfoque etnográfico a partir das ações do movimento Santa Maria do Luto à Luta (SMLL), uma organização marcada por cobranças incisivas junto ao judiciário e, como veremos, ao Ministério Público Estadual. A fala de Henrique presente na abertura deste artigo traz elementos interessantes, como a produção de um ativista até então em nada interessado em comunicar suas opiniões e que se transforma em um líder do movimento SMLL. Assim a “coragem” é como algo que se manifesta através da fala e da produção de uma verdade dos fatos que deve ser comunicada à população. A mudança brusca causada pela “tragédia” é vista como uma saída da passividade.

Isto posto, proponho aqui explorar dois pontos: a mobilização dos familiares de vítimas do movimento Santa Maria do Luto à Luta em sua empreitada moral contra o Ministério Público que passa pela busca de legitimidade em um contexto em que a cidade lhes parece hostil; em segundo lugar, através de que elementos o evento é construído como traumático. No âmbito local exploro como através do conflito uma linguagem que pressupõem justificações e avaliações morais é tecida tendo como temática a questão da justiça.

Nesse sentido, problematizarei como se dá a construção da causa do movimento em conflito com o Ministério Público Estadual da cidade de Santa Maria, porém, trazendo também à tona o contexto em que se inserem e como se relacionam com outras facetas do Estado que apontam não só para esse conflito, mas para a própria forma através do qual o movimento e os familiares de vítimas se pensam no espaço público. Trata-se de um processo, como já descrito por Bolstanski (2000) de passagem de uma causa particular a um problema geral.

Nesta direção, não se trata somente da construção de uma causa, mas do que é produzido conjuntamente a ela, um discurso fortemente moral de enfrentamento (2014) que toma como referência o sofrimento da perda e a continuidade desse sofrimento produzido pela interação considerada nada satisfatória com agentes e instituições públicas. Como Vianna (ibídem) já alertou as formas que são adotadas nos atos públicos dos movimentos de mães de vítima de violência do Estado só fazem sentido ao ter em mente o contexto destas mortes. No caso relatado pela antropóloga, as mortes estão previamente inscritas no terreno da desimportância social, que se evidencia na relação com o Estado. Por fim, procuro evidenciar como o evento não se cristaliza no tempo, mas continua sendo construído e seu potencial traumático pode ser ampliado com elementos do presente, como a “falta de justiça”.

Tomo de empréstimo a noção de evento crítico de Veena Das (1995) que implica pensar eventos extraordinários como momentos de “quebra do cotidiano”. Segundo Vecchioli:

“Como momentos de “quebra do cotidiano”, esses eventos permitem explicitar as transformações ocorridas nas noções e nas práticas da política contemporânea, quando as comunidades, ao se confrontarem com o Estado, se constituem como atores políticos; e quando o Estado, ao reconhecer essas comunidades como “vítimas”, assume a responsabilidade de atuar “em favor” de seus interesses. Tais eventos revelam com clareza que esse encontro entre uma racionalidade burocrática e os valores e as noções das comunidades não se realizará livre de conflitos.” (2000: 177).

Nesse sentido busca-se enfocar, como sugere Das (1995) nos conflitos que surgem do encontro entre vítimas e o Estado, na medida em que, através do sofrimento, ocupam o espaço público e constroem sua causa em conflito com o Estado.

Para Veena Das (1995) tais eventos têm um potencial produtivo no sentido de que a violência não é apenas “destruição”, mas tem potencial de criação de “comunidades morais”. Assim “ao exigirem justiça e ao se relacionarem com o sistema burocrático e jurídico do Estado, tais comunidades são deslocadas do mundo privado e ‘criadas’ como comunidades políticas” (Vecchioli, 2000: 177). Ao inscrever os componentes dessas comunidades morais como “vítimas” o Estado estaria exercendo seu poder de circunscrever identidades. Desse modo veremos que o Estado tem um papel importante na delimitação de uma forma de intervir sobre o sofrimento proporcionando um tipo de reconhecimento que não é o esperado pelos familiares de vítimas do incêndio.

A Cidade

Santa Maria é uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Conta com pouco mais de 250 mil habitantes e está localizada no centro do estado. Trata-se de uma cidade caracterizada por uma população jovem devido ao grande número de estudantes universitários que estudam na universidade federal ou nas se mudam para estudar na universidade pública ou em outras seis particulares.



Figura 1

Pirâmide Etária do Município de Santa Maria

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Esta pirâmide etária elaborada a partir do censo feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em Santa Maria demonstra a importância que tem na demografia local uma parcela da população caraterizada como “juventude” devido a sua faixa etária. Ao analisar percebe-se que há boa parte da população, representadas pelas linhas mais largas. Isso acontece devido ao fato de ser uma cidade universitária e um pólo de formação militar no qual jovens iniciam suas carreiras.

Importa pontuar que a população da cidade costuma se pensar como habitada por jovens. Em muitas conversas cotidianas e ocasionais é possível perceber que há pessoas que consideram que Santa Maria mudou drasticamente depois do incêndio na boate Kiss. Um dos elementos destacados nas conversas é que a vida noturna mudou de forma que a cidade não está mais alegre pela sua juventude, mas permanece em luto. Apontam para certa “morte” da cidade após um acontecimento tão impactante.

Em estudo recente sobre espiritualidade entre familiares de vítimas da Kiss (Peixoto, Borges e Siqueira, 2016) afirmam que o caso da Tragédia de Santa Maria rompe com a lógica do luto privado. Peixoto, Borges e Siqueira alertaram já para uma intensa comoção na cidade nos primeiros meses e uma percepção por parte dos familiares de um distanciamento posterior da população e por vezes da própria família (2016: 74). Nesse sentido, a Vigília realizada em uma praça central da cidade de Santa Maria se tornou um lugar onde os familiares “procuravam um espaço de compreensão e aceitação do sentimento de luto” construindo um elo que é baseado na espiritualidade e na interpretação de sinais místicos (ibídem: 75).

Em termos de políticas públicas disponibilizadas para os familiares de vítimas os serviços oferecidos focaram na dimensão das políticas de saúde. No âmbito municipal foi criado um serviço de atendimento “psicossocial” que implica tecnologias de gerenciamento do sofrimento que tem nos Centros de Atenção Psicossocial um orientador e é fundamentada nos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde3). No âmbito federal, a Universidade Federal de Santa Maria recebeu recursos para a criação de um centro de atendimento à vítimas de acidentes (CIAVA). O serviço atende familiares, sobreviventes e demais afetados com serviços de atendimento a pessoas portadoras de Transtorno de Estress Pós Traumático (PTSD), fisioterapia, atendimento a queimados, saúde pulmonar, entre outros. Esse serviço foi criado para atender aos atingidos pelo desastre de forma mais especializada. Na esfera Estadual, a 4º Coordenadoria Estadual de Saúde fica responsável pelo gerenciamento das políticas e articulação da rede, isto é, de articulação entre serviços, familiares, sistemas de produção de dados e controle de consultas, etc.

Diante da reação sentida pelos familiares com relação aos moradores que os acusam de entristecer a cidade e de políticas que abrangem apenas a questão da saúde, reconhecendo-os como vítimas e como seres sofrentes, mas não reconhecendo a responsabilidade dos agentes públicos ou promovendo ações de reparação e memória, como eles desejam, o uso da consigna “lutar não é loucura” adquire um significado local que deve ser explorado. O tópico seguinte fornece um cenário mais abrangente no qual estão inseridos os atores que constroem sua causa, num segundo momento descrevo os termos do conflito entre os familiares de vítima e o Estado.

A Linguagem do Trauma e o Ativismo de Vítimas

Para Fassin e Rechtman (2009) a realidade do traumatismo é revelador de mudanças que se estenderam para além do contexto francês. Os autores estão se referindo ao surgimento da categoria de trauma como um importante significante da nossa época (ibídem: XX) e do reconhecimento da vítima que se dá conjuntamente. Apontam que tanto a noção psiquiátrica de trauma (um choque psicológico) e a disseminada pela mídia (drama social) produz no discurso uma mudança de um sentido para o outro dentro de uma mesma passagem, sem marcar a distinção. Resulta daí a interpretação dos autores de que a ideia de trauma se tornou um lugar comum no mundo contemporâneo, uma verdade compartilhada (ibídem: 2). Nesse sentido, alertam que quando há um evento considerado traumático ninguém questiona mais a necessidade de ajuda psicológica, como aconteceu em Santa Maria.

O “Acolhe Saúde” serviço de “apoio psicossocial” foi criado pela prefeitura três meses após o incêndio. No entanto, no dia mesmo da ocorrência do desastre foi criado um serviço 24 horas de apoio psicossocial com voluntários que veio a gerar este serviço. Nesse contexto podemos considerar que o Estado, através da consideração desse evento como traumático reconhece os atingidos como vítimas e é no âmbito do sofrimento que se dá sua atuação. É através do reconhecimento da vítima pela categoria de trauma, a qual ainda que seja relativizada embasa os protocolos e as formas de atendimento e escuta. Mesmo que se fale em “potencial trauma”, a ideia de “luto normal” está permeada pela ideia de trauma.

Fassin e Rechtman (ibídem) consideram que atualmente a vítima é reconhecida como tal e o trauma é legítimo, diferente de algumas décadas atrás quando acidentados no trabalho ou veteranos de guerra tinham sua condição de traumatizados continuamente sob a égide da suspeita de fingimento. Portanto, foi durante o século XX que o trauma passou de “signo da infâmia” para “fonte de reconhecimento” (Fassin, 2014: 169). Este processo se deu através da influência, no círculo psi, de veteranos de guerra e mulheres que sofreram violência construindo uma aliança que deu a origem da categoria de Transtorno de Estress Pós Traumático (PTSD).

Há mais ou menos um par de décadas somente mereciam o substantivo de vítima, aqueles que tinham sofrido violências transcendentes, por exemplo, genocídio, mortos pela violência do Estado, desastres, entre outros (Gatti, 2016: 117). Para ele hoje as vítimas são ordinárias. Gatti ressalta essa característica para enfatizar que atualmente concorrem ao status de vítimas não somente vítimas de fatos considerados excessivos, mas que as causas de ingresso ao que ele chama de “novo espaço das vítimas” se pluralizam no qual as vítimas de processos transcendentes se mesclam com outros que considera próprios da vida cotidiana como acidentes domésticos, vulnerabilidade social, problemas bancários, etc.

Mesmo que em outro sentido Fassin e Rechtman chamam a atenção para a “banalização do trauma” (2009: 18) resultante de sua universalização, no qual não somente escalas de violência são apagadas mas também sua históra de modo que não há diferença entre sobreviventes de diferentes violências. É nessse sentido que os autores afirmam que atualmente estaria amplamente difundida a ideia de que o trauma permite as pessoas que sofrem compartilharem um destino comum da humanidade sofredora, sem distinguir as vítimas com base no tipo de acontecimento doloroso que experenciaram (Fassin e Rechtman, 2009: 39).

Em outra direção, no Brasil, diversos estudos tem alertado para uma “hierarquização do sofrimento” (Araújo, 2012; Arosi, 2013; Vianna, 2014) que se refere a uma prática discursiva e classificatória que hierarquiza sofrimentos. No campo junto aos familiares de vítimas do incêndio na Boate Kiss, presenciei uma situação na qual uma mãe afirmava que “só baixo a cabeça para quem perdeu os dois filhos” apontando para extratos de sofrimento em disputa. Vianna (2014) também aponta para como as mortes ocorridas por responsabilidade do Estado (por instituições ou policiais) produzem as mães de vítimas como agentes políticos importantes, na medida em que essas mortes estão marcadas pela desimportância social, assim a mãe é aquela que atesta a biografia do filho e atua no sentido de demonstrar que foi uma vítima. Araújo (2012) ressalta a hierarquização entre morte com corpo e desaparecimento observando a operação que resulta na ideia de que o “luto inconcluso” ou a morte sem corpo é a que causa maior sofrimento.

O PTSD por validar a palavra da vítima e atestar a violência a que foram expostos (Fassin, 2014: 167) não resulta necessariamente que as vítimas estejam se colocando num lugar de vitimização, mas sim demonstra a “inteligência social das vítimas”. Nesse sentido, o “império do traumatismo” atesta formas de subjetivação sem deixar de lado a agência das vítimas:

“Para Fassin, ao mesmo tempo em que conforma uma forma de veridição, o trauma torna-se um recurso na mobilização de direitos. Esse é um aspecto fundamental, na medida em que se evidencia uma dimensão original em relação à obra foucaultiana, ao associar as interrogações sobre as formas de subjetivação com a densidade e inventividade da perspectiva e da experiência dos atores sociais como parte da analítica empregada.” (Schuch, 2016: 8).

Gatti (2016) referenciando Chaumont no seu estudo sobre as vítimas do holocausto afirma que há uma concorrência para aceder ao status de vítima, pois esta faz com que o sujeito saia da invisibilidade social e coletiva outorgando reconhecimento. Gatti (ibídem) afirma que a condição de vítima se constitui como um dos catalisadores mais intensos da solidariedade hoje. Entretanto, no contexto pesquisado a empatia generalizada dura por um tempo e depois conflitos e opiniões relacionadas à continuidade do pranto público surgem no cenário da cidade. Podemos considerar que há uma tensão entre empatia com o sofrimento e desacordo com as formas de ocupação do espaço público da cidade.

A vítima aparece, para Sarti, como uma forma de dar visibilidade ao sofrimento (Sarti, 2014) e como um modo de acesso à direitos e legitimação desse sofrimento. O reconhecimento da vítima e de seus pleitos por direitos não é dissociado dos aparatos institucionais para expressão do sofrimento (ibídem). Como vimos, o Estado ao criar políticas públicas, ainda que somente na área da saúde, reconhece aqueles que são considerados vítimas. Inserido nesse contexto de reconhecimento por parte do Estado, os familiares de vítimas não contam com espaços institucionais de expressão do sofrimento para além do consultório, parece haver aqui um indicativo da existência de uma concepção de que o sofrimento deve ficar circunscrito ao privado. No entanto, como veremos, os familiares do Movimento SMLL rompem com essa delimitação e, é nesses termos que são criticados. É, em conflito, que eles criam espaços para expressar o sofrimento.

Para pensarmos a questão da produção do evento enquanto traumático, trago reflexões de Chaumont (2000) que já destacou a existência de um processo de reconhecimento da vítima que não é automático, a partir de seus estudos afirma que o reconhecimento dos sobreviventes do holocausto se dá no pós holocausto através da construção de uma singularidade da experiência judaica. Ainda nesse sentido, Vecchioli em escrito sobre a conformação da lista de vítimas de terrorismo de estado, enfocando os “processos de formalización y objetivación” desta categoria, afirma:

“(...) la identificación de un individuo como víctima no es el resultado automático de la aplicación de criterios meramente jurídicos y/o técnico-administrativos, sino que tal reconocimiento es parte de un proceso social más amplio a través del cual diferentes categorías sociales —entre ellas la categoría víctima del terrorismo de Estado— son socialmente construidas, redefinidas y discutidas por diversos agentes y grupos para dar cuenta del pasado político reciente de la Argentina” (2013: 5).

A antropóloga argentina situa que a nomeação enquanto vítima depende de um campo de forças históricas e sociais. Interessa para nossa discussão que nem a vítima, nem a ideia de evento traumático são processos naturais. Nos próximos tópicos vou me ater a construção da denúncia, às diversas faces do Estado e narrar, em detalhes, o conflito entre o Movimento SMLL e o Ministério Público Estadual de Santa Maria.

A composição da denúncia

Neste tópico retomo um embate acerca da culpabilidade no caso do incêndio na casa noturna Kiss. A fim de evocar as gramáticas morais e as justificações nesse contexto, e devido à diversidade de movimentos e bandeiras de luta, bem como o grande número de familiares e seus diferentes posicionamentos, elejo aqui uma causa específica para análise. Desse modo, para trabalhar com a noção de denúncia pública (Boltanski, 2000) tomo como situação exemplar o conflito entre os familiares do movimento SMLL e o Ministério Público Estadual. Vou definir três momentos chave na constituição do Movimento SMLL, principal movimento envolvido nesta disputa.

De certa forma o movimento SMLL se constitui enquanto portador de uma causa na dinâmica deste conflito. Tal organização nasceu com o intuito de fazer um movimento político mais ostensivo nas demandas judiciais e de memória. Nesse sentido, o movimento se forma através da noção de que o Estado precisa ser responsabilizado. Para melhor compreender o conflito vou explicitar aqui algumas informações sobre minha aproximação com o movimento e sobre as competências do Ministério Público.

As partes do conflito

O movimento SMLL foi criado em fevereiro de 2013, tendo como lideranças Henrique, um dos pais mais atuantes no movimento de vítimas em Santa Maria, Regina que esteve à frente do movimento em seu início e Joana, sobrinha de Henrique, que esteve muito atuante no primeiro ano, mas que se afasta do movimento posteriormente. Regina e Joana se encontraram por acaso e depois de um estranhamento inicial motivado pela desconfiança mútua de que estariam envolvidas com partidos políticos reconheceram entre si um compartilhamento de opiniões sobre as responsabilidades quanto ao incêndio. Ambas na casa dos 30 anos acabaram encontrando no movimento estudantil aliados, Henrique juntou-se a elas, tornando um líder posteriormente. Henrique nunca foi militante, ele adentra no universo dos movimentos sociais a partir da tragédia. Sua esposa faz parte de um movimento de mães que se formou após a tragédia para atuar com caridade. Henrique é empresário autônomo no ramo de construções, mas desde a tragédia está afastado do trabalho, recebendo auxílio doença do Estado. O mesmo ocorre com Regina, que trabalhava como auxiliar de nutrição.

O movimento foi criado, segundo Henrique, porque queriam acompanhar de perto questões acerca da “justiça”. Desde seu início o movimento fez cobranças duras sobre a responsabilidade dos agentes públicos e entende sua missão como sendo esse constante tensionamento sobre tal responsabilidade, inicialmente dirigida somente à prefeitura4.

A inserção de campo começou em maio de 2013 e minha aproximação com o movimento se deu devido ao meu interesse em entender a constituição de um movimento de vítimas que se coloca nesse lugar de oposição ao Estado. Outra razão se deve ao fato de que a associação realizava mensalmente homenagens e posteriormente cultos ecumênicos. Já o Movimento SMLL promovia atos públicos rotineiros, portanto, era um grupo que eu poderia acompanhar enquanto pesquisadora sem que, nesse momento, fosse necessário entrevistar familiares, ainda muito abatidos pelo evento tão recente. Desse modo os acompanhei, mantendo certa distância, por diversos momentos durante um ano. Até me aproximar dos familiares e colocar em prática outra metodologia. A partir de então estive com o movimento em muitas manifestações, vigílias, compartilhando conversas e experiências.

A outra entidade constituinte desse conflito é o Ministério Público Estadual. O Ministério Público (MP) trata-se de uma instituição do Estado Brasileiro que é responsável pela defesa dos direitos sociais e difusos, assim como pelo bom desenvolvimento da democracia. É caracterizado ainda por ser um órgão independente com relação aos três poderes do Estado, porém considerado essencial para a realização do poder jurisdicional deste. A AVTSM (Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) e o movimento SMLL constituem uma relação com a entidade logo após a tragédia que à medida que o MP vai tomando decisões acerca da responsabilidade de agentes públicos, principalmente o Movimento SMLL, passa a estabelecer uma relação tensa com a entidade.

Segundo site do Ministério Público da União há divergência se a instituição seria um quarto poder, nesse sentido ela é considerada um órgão do Estado, porém independente e com orçamentos próprios. De acordo com a Constituição de 1988 a instituição é um regulador dos três poderes. Por seu princípio de independência é garantido ao MP autonomia no exercício de suas funções.

O MP em suas diversas ramificações não tem poder de julgar, nem de legislar ou elaborar políticas, mas ele fiscaliza para que a democracia e os direitos sociais e individuais sejam mantidos. Desse modo, o MP enquanto instituição tem suas próprias funções, como as mais importantes para a nossa discussão a responsabilidade por promover a “ação penal pública”, a “ação civil pública”, o “inquérito civil”, e requisitar diligências investigatórias assim como promover a instauração de inquérito policial5. Importante ressaltar que o MP também pode fazer investigações durante uma ação penal ou civil pública desde que respeitados todos os direitos da pessoa investigada assim como em uma investigação policial. A existência de um inquérito policial não é imprescindível para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público ao juizado competente6.

O MP abrange um conjunto de instituições que possuem a mesma função porém com responsabilidades circunscritas a um universo específico ou a uma instância em particular. Nesse sentido, o MP abrange o Ministério Público da União (MPU) que é divido em: Ministério Público Federal; Ministério Público do Trabalho; Ministério Público Militar e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. O mais importante para a análise aqui elaborada é o Ministério Público Estadual que opera na instância dos estados federativos. No âmbito federal os agentes do Ministério Público são os procuradores, sendo que o chefe do MPU e do MPF (Ministério Público Federal) é o Procurador Geral da República, nomeado pelo Presidente da República. O Ministério Público Estadual de Santa Maria (MPE) tem como chefe o Procurador Geral de Justiça, que é escolhido pelos governadores do Estado a partir de uma lista com três nomes fornecida pelos membros da instituição. No Ministério Público Estadual existem as figuras do promotor de justiça e do procurador de justiça, o primeiro atua em primeira instância junto aos juízes de direito que compõem as comarcas7 e fóruns estaduais nos municípios e os segundos atuam em segunda instância junto aos desembargadores dos Tribunais de Justiça.

Os promotores e procuradores de justiça, cada qual em sua instância, para além de instaurar as ações civis e penais públicas, promover investigações e oferecer a denúncia aos juízes competentes a determinada matéria, atuam como defensores do Estado no cenário das audiências judiciais, eles são os advogados do Estado e da sociedade. Isso ocorre nos crimes considerados públicos e incondicionados, aqueles que não dependem de iniciativa de um cidadão ou de representação. Devemos atentar para a informação de que é o MP o responsável em tornar os denunciados em réus perante o poder judiciário. É este mesmo órgão que pode estabelecer acordos como os TAC (termo de ajustamento de conduta)8 para que uma empresa ou instituição possa se adequar a lei, por exemplo, se ela está ferindo algum direito. Desse modo, eles atuam na defesa dos “interesses relevantes da sociedade”. Nos tópicos em que relato o conflito dos familiares com essa instituição fica evidente o quanto essas multiplicidades de funções do Ministério Público acabam forjando um contexto ainda mais tenso e de alianças variadas.

Quando nos referirmos ao processo judicial que corre na justiça comum,9 tanto aquele que julga os já formalizados réus no caso do incêndio na Boate Kiss quanto os processos perpretados pelos promotores de justiça contra alguns familiares de vítimas, estamos nos referindo à processos que correm em primeira instância10, o primeiro como causa penal e o segundo como causa civil11 O Juíz tem o papel de julgar o que até ele chegar através do Ministério Público, de demandas individuais realizadas por advogados, as denúncias perpretadas por cidadãos, entre outros. A AVTSM e o movimento SMLL possuem assistentes de acusação12 atuando no processo judicial criminal.

O Ministério Público Estadual (MPE) recebeu em março de 2013 da polícia civil de Santa Maria um inquérito criminal e civil no qual 28 pessoas eram acusadas por diferentes responsabilidades, entre elas 16 indiciados criminalmente e outros por improbidade administrativa relativas ao incêndio na boate Kiss. Após análise, o Ministério Público indiciou apenas quatro pessoas criminalmente e arquivou o processo por improbidade administrativa, encerrando assim o andamento das investigações e não tornando prefeito e funcionários, responsáveis pela fiscalização e emissão de alvarás13, como responsáveis pela ocorrência do incêndio na casa noturna. Esse fato demarca o início de um conflito entre familiares e essa instituição.

Por fim, apresentado o MP e o movimento nos próximos tópicos adentro as especificidades e cronologia dos termos deste conflito. A causa pública e a identidade do movimento se constituem na elaboração desta denúncia contra os órgãos públicos. Outro aspecto diz respeito a como o evento continua em constante produção e a “luta” contribui para a constituição de uma interpretação sobre o evento. Para os familiares de vítimas organizados nesse movimento, demonstrar seu ponto de vista sobre a responsabilidade das instituições públicas no evento é de extrema importância e a busca por novas alianças, portanto, aparece como um modo de fazer crescer a denúncia. Para este artigo utilizo-me de dados coletados em matérias jornalísticas, entrevistas e inúmeras inserções de campo junto ao movimento analisado.

Primeiro Momento: desenhando a causa pública

Em “Um Mural para a Dor: movimentos cívicos religiosos por justiça e paz” Birman e Leite consideram:

“É sobretudo a falta de reparação e de justiça que produz em muitos o sentimento do intolerável. O que dói, nesses casos, é a presença de um muro de proporções difíceis de mensurar bloqueando as saídas para esse intolerável (…) A violência, nesse caso, é de natureza moral, e diz respeito a um tratamento recebido pelo morto e sua família visto como ofensivo e desrespeitoso com sua memória” (2004: 10-11, apud Vianna, 2014: 214).

Portanto, os sentimentos do intolerável, do impensável e da injustiça perpassam uma relação com o Estado. Segundo Boltanski (2000), a denúncia pública é construída porque um sentido de justiça foi ofendido, acarretando a designação de um responsável que pode ser uma abstração ou designado por um nome.

A concepção do Movimento SMLL de que há responsabilidade por parte de agentes públicos começa a ser desenhada logo após o incêndio. De modo geral, alguns familiares demonstravam insatisfação com órgãos públicos como os bombeiros, instituição vocacionada a apagar incêndios e garantir a concordância dos espaços com a legislação relacionada, na primeira audiência pública sobre o incêndio na boate Kiss em Santa Maria abril de 2013.

Entretanto, a primeira ação mais enfática do movimento foi a presença em Porto Alegre quando do julgamento que decidiria se os quatro acusados até então, presos preventivamente, seriam libertados. Na ocasião os acusados foram liberados e os familiares fizeram um protesto fechando uma das avenidas principais da região central de Porto Alegre, próxima ao fórum central, local do julgamento. Nesse momento que os familiares sentem uma ruptura, no sentido de que até então estavam acreditando na possibilidade de o judiciário “fazer justiça”.

À medida que o tempo passa e novos documentos, testemunhos e interrogatórios vão surgindo a causa pública vai ganhando contornos mais definidos. Um espaço de atuação, ainda no primeiro semestre após o incêndio, foi uma ocupação na Câmara de Vereadores14 que havia instaurado uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito)15 a qual os familiares consideravam ineficaz na medida em que não havia vereadores da oposição em sua composição, o que os familiares consideram ser parte de um acordo para que o prefeito saísse ileso. À época o movimento estudantil foi um forte aliado dos familiares na ocupação da casa legislativa, exigindo que os membros da CPI fossem modificados.

Como nos ensina Boltanski (2000) o denunciante deve mobilizar a população em prol de sua causa —um número indefinido, mas necessariamente elevado de pessoas, utilizando-se de abstrações como “por todos” ou “por todos homens de bem” como justificativa para a justeza de sua causa—. Busca-se assim o processo de transição de passagem do “caso particular” ao “interesse universal” (ibidem: 238). Aliar-se ao movimento de juventude foi uma forma de atrair aliados à causa, mas também de fazer sua abrangência se expandir. Era comum, por exemplo, os familiares se referirem aos membros do movimento estudantil como “seus jovens” remetendo a uma aproximação destes com seus filhos vitimados pelo incêndio. Assim tornavam “todos os jovens” como possíveis vítimas justificando sua luta.

Desde os primeiros meses após a tragédia com a divulgação do inquérito policial, tanto o movimento SMLL quanto a AVTSM reuniam-se com o Ministério Público Estadual para que o mesmo repassasse aos familiares informações sobre o inquérito desenvolvido pela instituição. Foi um período de negociação entre a associação e o movimento na medida em que a AVTSM defendia que não deveria haver manifestações públicas relacionadas à atuação do Ministério Público para não ocorrer o risco de causar o desaforamento do processo, que se trata de transferir o processo de um fórum a outro. No caso, o processo estava e continua sendo julgado no Fórum de Santa Maria. O desaforamento pode transferir o processo para a capital do Estado e este risco existe devido a, por exemplo, expressiva comoção social que poderia vir a interferir na decisão do Juiz. O movimento SMLL nesse primeiro momento concordou com a associação, segundo Henrique, para não causar tensionamentos com a mesma.

Ao mesmo tempo, o MPE vinha tomando decisões nada populares entre os familiares. O primeiro inquérito da instituição no que tange à boate Kiss e os responsáveis pelo incêndio resultou na denúncia efetuada pelo Ministério Público, no dia 04 de abril de 2013, de quatro pessoas por homicídio (donos da boate e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira) e outros quatro bombeiros por fraude e falso testemunho. O prefeito também apontado pela polícia como suspeito, por ter foro privilegiado16 teve seu caso encaminhado ao Tribunal de Justiça. No entanto, em março de 2013 o MPE encaminhava ao Conselho Superior do Ministério Público o arquivamento de inquérito civil de improbidade administrativa que investigava o prefeito de Santa Maria, César Schirmer.

Segundo Momento: rompimento de relações entre o movimento SMLL e o Ministério Público

Em setembro de 2013 familiares se reuniram com o Conselho Superior do Ministério Público e entregaram “novos documentos” com a expectativa de reverter o pedido de arquivamento feito pelo MPE no início de março. As novas provas, como foram chamadas pelos familiares, se tratavam de documentos constantes em dois inquéritos da polícia civil adicionais ao primeiro. Tratavam-se de inquéritos que versavam sobre a concessão de alvarás (permisos) da boate Kiss, e tais documentos apontavam para a falsificação de laudos e para o fato de que a boate nunca obteve todos os documentos necessários para seu funcionamento.

É nesse momento que os familiares tomam conhecimento de uma falsificação no laudo17 de poluição sonora e no abaixo assinado de vizinhança também relacionado à questão do barulho.

Em dezembro de 2013 o inquérito civil que investigava improbidade administrativa do prefeito e agentes públicos retorna a Santa Maria como resultado da ação dos familiares. Entretanto, o MPE se manifesta à época que irá aguardar a finalização das investigações da polícia civil do qual surgiram tais documentos. Até então, os familiares vinham se reunindo com a entidade e tentado estabelecer um diálogo, em seus termos. O órgão que havia prometido aos familiares “punição exemplar” não vinha cumprindo, segundo meus interlocutores, esse objetivo.

Henrique considera que no início, a comunicação entre a associação e o movimento foi difícil. Após os familiares da associação teriam “caído na realidade ao perceberem terem sido enganados pelo MP”, teriam começado a se posicionar então de forma mais enfática. Em 15 de outubro familiares protestaram silenciosamente em frente ao MPE com cartazes solicitando a troca do promotor que reavaliaria o inquérito sobre improbidade administrativa de agentes públicos. A partir desse momento as suspeitas, que até então recaiam sobre a prefeitura, passaram a ser direcionadas também ao MPE.

Em 22 de outubro os familiares retornam a frente do MPE dessa vez com o “minuto do barulho” como medida para relembrar o dia 27 de janeiro de 2013. Em 31 de outubro de 2013 o subprocurador18 do Ministério Público Estadual com sede em Porto Alegre visita Santa Maria e tem uma reunião com os familiares. Depois da reunião os familiares concordaram em desmontar a vigília que durou seis dias e tinha sido mantida por familiares da AVTSM, movimento SMLL e movimento Mães de Janeiro.

Portanto, é nesse contexto que a relação dos familiares com o MPE que já era pouco amistosa se torna tensa. O movimento SMLL passa a cobrar mais enfaticamente o MPE e a acusá-lo de responsabilidade. Henrique relata que em novembro estiveram no MPE e que depois desse encontro o movimento se reuniu e “a gente viu que a gente tinha que fazer alguma coisa que gerasse impacto e que as pessoas ficassem sabendo o que o Ministério Público vinha fazendo”.

A elaboração dos ritos de aniversário do incêndio na boate Kiss ocorre anualmente em frente à casa noturna e é organizada pelo movimento SMLL e pelas Mães de Janeiro. Quando da organização dos ritos de um ano Henrique conta que estavam precisando de “ajuda”. O movimento SMLL acabou por encontrar seus aliados na SEDUSFM (Sindicato dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria), no Levante da Juventude19 e novamente no Bloco de Lutas. Carlos Latuff, um cartunista carioca comprometido com causas sociais e com o qual a SEDUSFM tinha contato elaborou um charge na qual o poder público, os bombeiros e o Ministério Público figuravam saindo de trás da boate e o MPE selava com a mão a boca de uma mãe que pedia justiça, segue a charge abaixo:



Figura 2

Charge de Carlos Latuff elaborada para o 1° aniversário do incêndio na Boate Kiss20

A charge foi colocada em um outdoor da SEDUSFM, na tenda da vigília21, na fachada da boate Kiss e estampou muitas camisetas usadas pelos familiares do movimento SMLL durante as homenagens de aniversário do incêndio. Após a vigília em frente à boate os familiares caminharam até o MPE com a intenção de “deixar o recado de que estamos de olho”. A charge acaba por provocar uma retomada das conversações entre o movimento Santa Maria do Luto à Luta e o MPE. Após quatro meses das charges expostas na cidade, o MPE convoca familiares para uma conversa de “pacificação”. Nesta reunião a entidade pede a retirada das charges, já os familiares aproveitam para colocar seu descontentamento com o órgão. Ao final acabam por concordar na retirada das charges expostas. No entanto ao longo do ano de 2014 outros acontecimentos trouxeram tensão a essa relação.

Terceiro Momento: o Ministério Público reage às acusações

Durante alguns meses de 2014 as reuniões seguiram entre familiares e MPE com a presença de representantes do movimento SMLL. À medida que o tempo foi passando a tensão inicial entre a AVTSM e o movimento SMLL foi se estabilizando e cada vez mais os personagens ligados transitam entre essas organizações. Em outubro de 2014, um dos promotores é acusado de ter agredido verbalmente uma das mães presentes numa das reuniões entre familiares de vítimas e MPE. Devido a esse fato os familiares oficializaram denúncia em delegacia. Também recorrem a organismos governamentais de direitos humanos como a comissão de direitos humanos da Câmara de Vereadores, entre outras. A partir desse acontecimento é que podemos designar um terceiro momento, o mais conflituoso até então.

Em fevereiro de 2015 os familiares do movimento SMLL retornam a frente do MPE para pedir agilidade na ação civil por improbidade administrativa de agentes públicos, pois o MPE havia sinalizado a prefeitura um pedido de maiores informações acerca de detalhes sobre alvarás e fiscalização. Familiares do movimento haviam colado cartazes pela cidade acusando o MPE, em especial na figura do promotor Ricardo Lozza, que assinou o TAC com a boate Kiss em 2011 afirmando a seguinte frase “Prefeito, Secretários e Promotores, todos sabiam que a boate estava irregular e permitiram que continuasse funcionando até matarem 242 jovens. Quem vai pagar a conta?”. Em março do mesmo ano um juiz ordena a retirada destes cartazes. Também nesse mês Lauro assume a presidência da associação e Henrique a vicepresidência.

Em setembro, três pais, Henrique, Lauro e José são denunciados por calúnia por um dos promotores do MPE de Santa Maria. Aqui relato o processo empreendido contra Henrique e Lauro visto que residem em Santa Maria. Após tal acontecimento os familiares de certo modo se fortaleceram ao reunir em torno de 60 familiares num corredor estreito no fórum de Santa Maria, do lado de fora da sala de audiências a qual suportava apenas a presença das partes e dos agentes da cena judicial. O processo corre na quarta vara criminal do Fórum de Santa Maria.

Nessa primeira audiência os pais que foram acusados de ter cometido o crime de calúnia e difamação passaram pela decisão de dar continuidade ou não ao processo. Visto que tal crime tem pena de dois anos a primeira audiência tem uma função conciliadora, a qual consiste em o réu se desculpar para com a vítima, e corre em Juizado Especial Criminal22. Essas audiências são públicas, porém os espaços disponibilizados são muito pequenos. Entretanto, Henrique e Lauro se negam a “pedir desculpas” e decidem manter o processo, pois “queremos respostas e não cometemos nenhum crime, queremos provar isso”. Desse modo, os familiares levam a diante o conflito judicial na expectativa de provar pelo judiciário que não mentiram ao acusar o MPE de responsabilidade no incêndio.

Aos gritos de “não matamos nossos filhos” os familiares deixam claro que consideram o que está acontecendo como “uma inversão de valores”, no qual as vítimas se encontram no banco dos réus. A concepção dos interlocutores da pesquisa é de que o MPE e esse conflito instaurado representa a imoralidade da instituição e das acusações que ela vem perpetrando nesse processo. Essa inversão de valores projetada no Estado refere-se também ao fato de o MPE, órgão protetor de direitos e fiscalizador do Estado, não estar garantindo os direitos dos familiares e assim estaria falhando na efetivação de sua função.

Atualmente o processo tomou outro rumo, Henrique pediu o recurso de “exceção da verdade” no qual busca comprovar que o que foi dito por ele sobre o promotor se trata de uma verdade. Um dia antes do aniversário de três anos do incêndio na Boate Kiss, Kiko Spohr, sócio da boate empreende uma denúncia contra a prefeitura e o promotor que assinou o TAC com a diretoria da boate, permitindo sua reabertura após reforma. Nesta denúncia pede indenização, que segundo ele, será destinada a AVTSM, o que causou revolta entre muitos pais, pois afirmam não querer um dinheiro “sujo com o sangue dos nossos filhos”. Este acontecimento e o depoimento de Kiko no processo criminal trouxe uma aliança estratégica: Kiko é chamado pelo advogado de Henrique como testemunha de defesa, na medida em que sua fala acusa Ricardo Lozza, o promotor que assinou o TAC, de ter liberado a casa noturna para funcionamento mesmo não estando em condições. Henrique faz questão de salientar que não se trata de uma aliança com o réu do outro processo corrente. Esse uso do depoimento se devia a possiblidade de usar o mesmo depoimento que Kiko havia dado no processo criminal para provar que Henrique não estava incorrendo em difamação e calunia.

Relativo às demandas judiciais, os familiares estão elaborando uma denúncia contra o Estado brasileiro acusando o mesmo de violar o direito à Justiça. O discurso dos Direitos Humanos é mais uma dessas alianças, na medida em que, eles recorrem a entidades de Direitos Humanos como uma forma de ampliar sua denúncia e fazêla crescer, procurando angariar parceiros não somente no nível local, mas transnacional. A auto identificação como vítimas aparece aqui também como uma estratégia para delimitar limites morais que estariam sendo ultrapassados pelo judiciário de Santa Maria.

A injustiça, entendida como falta de responsabilização criminal e de políticas de memória, coloca em ação justificações morais para sua defesa o que estabelece um processo de acusação (Boltanski, 2000). Tal processo de acusação como vimos já vinha em curso e agora tem como palco o próprio judiciário. Os familiares têm como justificação moral dessa empreitada contra o MPE o desrespeito que sentem ao ferirem a memória dos seus filhos ao não fazer justiça e ao blindar determinados agentes públicos.

A denúncia elaborada pelo movimento SMLL quanto à responsabilidade de agentes vinculados a instituições públicas e do governo consolida-se. De todo modo esses agentes produzem mudanças na forma de denunciar que demonstram que os familiares estão especializando-se cada vez mais nas possibilidades jurídicas e legais de fazer com que seus clamores por justiça sejam escutados. Mantém-se o núcleo duro da denúncia, mas as formas de manifestar-se e exigir justiça se especializam, demonstrando domínio de figuras jurídicas e estratégias de acusação. Nesse sentido, angariam mais um aliado na sua luta por justiça, com uma argumentação de negativa ao direito à justiça pelo Estado Brasileiro que não teria permitido, na figura do Ministério Público, nem sequer o julgamento dos agentes públicos.

Retomando questões: políticas, causas públicas e sofrimentos

O cara fica meio doido das ideias com relação as respostas que nós não estamos tendo do Ministério Público, isso que tá dando problema muito grande, emocional e até psicológico da gente, tem noites que eu me acordo pensando nisso aí e eu não consigo dormir e aí eu vou pra internet olhar o processo (Henrique, 30/08/2014)

Uma interpretação possível desta fala de Henrique demonstra a relação que há para ele entre “o psicológico” e a necessidade sentida de respostas por parte do MPE. Nesse sentido é importante perceber aquilo que já foi ressaltado por Birman e Leite (2004), de que é na falta de reparação e políticas de memória, nesse caso impossibilitadas pelo Estado, que o sentimento do intolerável é forjado. As respostas esperadas aparecem associadas ao desejo de realização do que considera enquanto justiça. Portanto, a luta por justiça está estritamente relacionada ao que Henrique considera como psicológico.

Em certa ocasião em um bar ouvi de uma mulher que “a Kiss”, como muitos se referem ao evento, “arruinou” Santa Maria, referindo-se aos resultados do incêndio na cidade. Ao dizer isso, explicou-me, queria se referir principalmente à vida noturna de Santa Maria que após a Kiss com as exigências legais e maior fiscalização muitos lugares haviam fechado. Também queria se referir aos familiares que estariam deixando a cidade triste e que não estavam conseguindo lidar bem com o que aconteceu. Considero que há pessoas mobilizadas nesse universo dos familiares de vítimas, solidárias com a causa, e há um discurso que circula na cidade de que os familiares não conseguiriam abandonar sua dor. Essa perspectiva considera o choro em espaço público como algo que enluta a cidade atrapalhando seu desenvolvimento.

Um ponto importante do contexto local é a consígna criada pelo movimento SMLL que pronuncia “lutar não é loucura”. Essa consígna produziu uma interessante perspectiva sobre a relação dos familiares com a luta por justiça e o que consideram por “loucura”, dentro de um contexto em que atribuir loucura ou problemas emocionais a uma pessoa também é uma forma de avaliação moral. A citação feita no início deste tópico não demonstra uma situação de “loucura”, está mais relacionada a um efeito psicológico da injustiça, que dificulta a vida cotidiana, mas não é percebida enquanto doença. Henrique, por exemplo, no início se negou a tomar remédios recomendados pelo serviço de atenção em saúde do Hospital Federal da universidade pública de Santa Maria. Além do receio em “viciar” nos remédios, não quer que os remédios atrapalhem sua “luta”. Ao questioná-lo sobre diagnósticos, ele diz que não importa, que ele “não é louco”. Portanto esta consígna é também uma afirmação política contra essas valorações morais que circulam sobre os familiares organizados e o evento.

A categoria “vítimas” tem usos circunscritos em contextos específicos. Como afirma Vecchioli (2013) é uma categoria ambígua e que depende de contextos políticos e sociais. Portanto, quando os familiares afirmam que há uma “inversão de valores” ao serem colocados no banco de réus, eles se posicionam como vítimas para que se configure uma interpretação moral do acontecimento, visto que vítima e agressor são duas categorias que se constituem mutuamente. Ao serem colocados como réus os familiares aproveitam esse espaço para se jogar na empreitada de provar que não estão errados, mas também de que eles são as vítimas, procurando assim se colocar nesse espaço moral. Isso não significa que eles não fossem já reconhecidos como vítimas, mas demonstra o manejo desta categoria politicamente.

Retomando Chaumont (2000) o reconhecimento da vítima depende de condições sociais para sua realização. Desse modo, alguns agentes são reconhecidos como vítimas e outros não. Há uma construção de uma singularidade do sofrimento dos familiares que está muito relacionada também a ideia do evento enquanto traumático. Que “a Kiss” foi um evento traumático é praticamente um consenso. Mas, a noção de traumático não está necessariamente ligada categoria clínica de trauma, mas a uma noção que relaciona o acontecimento ao impacto que ele provoca na população e nas pessoas que o vivenciam. Por isso, ressaltam-se os elementos trágicos e de maior impacto para eles: morte em massa, condições dos corpos, violência, geração, entre outros.

Como apontou Sarti (2014) o reconhecimento da vítima depende de aparatos institucionais para sua expressão. Referindo-me às políticas de saúde direcionada aos afetados o espaço clínico e mesmo de atendimento psicossocial é um espaço privado e circunscrito dentro das margens do controle estatal. No início do oferecimento desses serviços de saúde houve muita desconfiança por parte dos familiares, como me contou Regina em uma entrevista recente, relacionada à consideração por parte do movimento SMLL de que a prefeitura deve ser responsabilizada. Essa desconfiança, segundo Regina, foi sendo contextualizada dentro de outro cenário que acabou construindo relações de confiança entre os familiares e alguns profissionais. Regina conta que “passamos a levar em consideração que eram profissionais”, portanto, havia uma relação de sigilo.

Por fim, conjuntamente com um sentimento de desrespeito que é provocado por uma ofensa moral há uma estratégia do movimento SMLL no qual buscam “criar um fato” para manter o assunto em debate público. Não se trata de fatos forjados, mas de uma estratégia de luta com preocupações reais. Nesse sentido o conflito com o MPE e a luta por justiça são também formas de criar espaços para expressar o sofrimento e de busca por uma legitimidade através de meios jurídicos ou que envolvem a ideia de justiça.

A construção de um evento enquanto traumático certamente não é feito de forma unívoca. Nesse sentido, não somente as políticas de saúde reconhecem o evento como potencialmente traumático e nesse movimento circunscreve quem são as vítimas, mas as próprias formas de ação dos familiares organizados inscrevem uma outra linguagem baseada na ideia de luto que precisa ser vivido e que é impedido devido ao acréscimo de sofrimento adquirido frente ao descaso do Estado para com as demandas relacionadas a memória e justiça. É na busca de fornecer essa outra linguagem, que delimita o sofrimento como normal, permanente e com potencial de expansão, que os familiares tentam construir esses espaços de expressão.

Considerações finais

A interpretação sobre o evento é produzida a partir da noção que enfatiza os componentes trágicos do acontecimento, potencializadores do sofrimento. A “falta de justiça” aparece como um sofrimento que se soma a uma siituação já fragilizada dos familiares emocionalmente.

A investigação de Zenobi (2014a) acerca de um incêndio em um recital de Rock aponta para a presença de um discurso sobre o trauma psicológico que familiares e sobreviventes vivenciariam. O autor alerta que “(...) una catástrofe no existe como tal sino es a través del trabajo colectivo de definición de esse evento como una catástrofe” (ibídem: 1). Zenobi (2014b) aponta que as circunstâncias terríveis em que se deram as mortes dos 194 jovens na catástrofe colaboraram para a percepção destas como mortes traumáticas (ibídem: 3). As políticas públicas governamentais elaboradas no pós-catástrofe estavam permeadas pela noção de crise, sofrimento e trauma.

A consígna “lutar não é loucura” faz sentido no contexto da cidade, que compõem um discurso que responsabiliza os familiares por enlutar a cidade. Eles continuam sua luta, levando a níveis judiciais. Diversas justificações morais aparecem nesse contexto: a frase “não matamos nossos filhos” demonstra a produção de um discurso de que eles não deveriam estar no banco de réus, que isso é uma “inversão moral”. A partir daí a condição de vítima reaparece com um uso político para assim produzir uma ampliação de sua demanda.

Segundo Vianna (2014) zonas semânticas são criadas pelos familiares de vítimas para obter reconhecimento das mortes de seus filhos. Nesse sentido, podemos considerar que os familiares, ao nomearem o evento enquanto um “massacre”, por exemplo, e a forma como a relação com o Estado transcorre como “injusta”, produzem uma avaliação moral sobre o Estado, aqui representado pelo prefeito, pelos funcionários que deveriam fiscalizar a boate e pelo MPE. Para a antropóloga ao falar das mortes a partir de seu contexto:

“(...) os atores produzem leituras sobre o que ocorreu, a quem cabe a responsabilidade por isso, os custos afetivos, morais e políticos envolvidos e o tipo de reparação e reconhecimento esperados frente às dores experimentadas não só com a morte do familiar, mas em diversos momentos anteriores e posteriores que podem ser conectados a essa morte” (ibídem: 230).

Retomando os questionamentos feitos por Das (1995) acerca de como eventos extraordinários passam a habitar o cotidiano e a subjetividade dos afetados, podemos considerar que para os familiares organizados é na luta e no embate com o Estado que novos espaços para existir são criados. Assim são produzidos e se produzem como vítimas de uma violência que continua a ocorrer e como pessoas em luta, como “guerreiros”. Nesse processo os informantes aqui citados, Henrique, Regina, Lauro, entre outros se pensam enquanto pessoas que tem sido desrespeitadas pelo Estado. O uso de medicamentos, a frequência em psicólogos e psiquiatras passa com o tempo a se tornar rotina e incorporado ao cotidiano os familiares adotam uma postura defensiva afirmando que “não somos loucos”. Nesse sentido frente ao contexto já apresentado neste artigo criam uma consígna que muito possui de defesa moral.

A continuidade da luta e sua especialização através do domínio de categorias jurídicas e das formas processuais demonstra um saber elaborado pela vítima e a produção de uma “verdade dos fatos”. A questão da “loucura” faz parte de um contexto em que as pessoas costumam pensar que quem se medica é porque é “louco”. Os familiares em sua luta, que também é por legitimidade de seus enunciados, acionando a categoria de loucura como desligado do âmbito do sofrimento, para assim afirmar que sofrem, pois é impossível não sofrer. E sofre-se por “falta de justiça”. Esses elementos parecem apontar também para uma resistência ao tratamento, em especial, psiquiátrico. Os familiares que entrevistei, em sua maioria, são medicados, mas tem uma aderência ao tratamento que oscila.

Esse novo espaço de expressão, forjado no conflito com o judiciário, permitiu enunciar a tragédia em outros termos e dar um novo sentido para a noção de traumático. Isto é, não se trata somente de um sofrimento individual que pode se tornar doentio, mas de uma situação política na qual seu sofrimento não é respeitado, na medida em que a “justiça” não estaria sendo feita, aumentando assim o potencial traumático do evento, que parece se prolongar no tempo. Nesta direção os familiares situam o traumático num substrato social compartilhado.

Para finalizar, a produção das vítimas e do evento enquanto traumático ocorre através de diversos atravessamentos ao longo do processo de ativismo dos familiares de vítimas e a partir de formas de gerenciar o sofrimento criadas pelo Estado. O evento continua em produção, ele não se cristaliza no tempo, mas se atualiza nas ações do presente. Desse modo a produção da categoria de vítima, do evento como traumático, da falta de justiça e o “desrepeito com as vítimas” estão continuamente se atualizando e trazendo novas perspectivas para o acontecimento. Assim sendo o evento continua sendo produzido e reproduzido gerando contextos férteis para a análise das demandas dos movimentos de vítimas e de sua relação com as instituições e o contexto local.

Referências

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Notas

1 Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
2 Optei por nomes fictícios.
3 No Brasil, desde a constituição de 1988, foi idealizado um sistema que reunisse todas as formas de atendimento em saúde à população. Assim ele engloba serviços de baixa, média e alta complexidade. O SUS está fundamentado em um conceito ampliado de saúde e é regido pelos princípios de universalidade, equidade, integralidade e outros como participação e descentralização. O sistema é formado pelos três entes federativos, com competências municipais, estaduais e federais.
4 Órgão responsável pela gestão das cidades, com exceção do Distrito Federal.
5 Nesse caso, o Ministério Público solicita que seja aberto ou reaberto inquérito, mas quem faz a investigações é a polícia civil.
6 O MP Estadual, por exemplo, dirige suas denúncias ao Juizado Estadual.
7 Relacionada a um distrito.
8 O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) é um acordo extrajudicial entre Ministério Público e o violador de algum direito. Este instrumento tem sido utilizado pela instituição para evitar processos judiciais e para garantir que violador retorne a situação de legalidade. O TAC não é uma ferramenta exclusiva do Ministério Público ele pode ser perpetrado por qualquer órgão público legitimado à ação civil pública, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados-membros, os Municípios, o Distrito Federal, as autarquias e as fundações públicas. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30469/termo-de-ajustamento-de-conduta-tac-e-algumas-observacoes-sobre-o-seus-limites. Acessado: 11/01/2017.
9 A justiça comum é aquela que não define uma matéria específica para sua atuação, mas engloba aquilo que não está previamente destinada a ser analisa em um órgão específico do judiciário.
10 Em primeira instância o agente julgador é o Juiz de Direito de uma comarca, que engloba vários municípios e varas. Nessa instância um juiz analisa e julga o caso que for apresentado ao poder judiciário. Após o veredicto as partes podem solicitar recursos, que se trata de um pedido de reexame do resultado da decisão do referido juiz. A segunda instância é aquela na qual esses recursos são julgados por um colegiado de magistrados chamados de desembargadores, o órgão se chama tribunal de justiça. Para questões de esfera federal são julgadas nos tribunais federais regionais e os magistrados são nomeados de desembargadores federais.
11 As causas penais se referem a processos que envolvam crimes enquanto as causas civis se referem a conflitos entre pessoas, instituições, empresas.
12 Como vimos o Ministério Público é o titular no papel de agente acusatório nos processos judiciais. No entanto, há uma segunda figura de acusação, a única que é dispensável no cenário judicial. Os assistentes de acusação são advogados da parte ofendida pelo crime que está em julgamento, podem ser escolhidos pelas vítimas. No caso Kiss frente ao grandioso número de vítimas tanto a Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria quanto o Movimento Santa Maria do Luto à Luta dispõem de assistentes de acusação no processo que julga os quatros réus (dois da banda musical que promoveu o espetáculo pirotécnico e os donos da casa noturna).
13 Em espanhol os termos “permiso” ou “habilitación” servem como corresponde ao “alvará”.
14 Sede dos integrantes do Parlamento Municipal.
15 Trata-se de um conjunto de três legisladores compondo um organismo de investigação e apuração de denúncias visando a proteção da sociedade. Ela é composta pelos legisladores, podendo ser do nível municipal, estadual ou federal. No final do processo de investigação a CPI produz um relatório com recomendações acerca das responsabilidades e das penas.
16 devido ao seu cargo político, o prefeito, assim como outros agentes públicos tem foro privilegiado, o que significa que seus crimes são julgados em instância superior.
17 Documento técnico de verificação de poluição sonora que leva em consideração tanto a estrutura quanto a opinião dos moradores circundantes ao local.
18 Substitui o Procurador Geral de Justiça, chefe do Ministério Público Estadual.
19 Movimento de juventude que atua com arte e cobra por políticas públicas para juventude.
20 Disponível em: https://latuffcartoons.wordpress.com/tag/boate-kiss/. Acessado: 26/07/2016.
21 Espaço montado pelos familiares de vítimas para homenagear as vítimas do incêndio e para relembrar a cidade do ocorrido.
22 Órgão do judiciário no qual ocorre o julgamento, por um juiz, de causas de menor potencial ofensivo.


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